De costas para o óbvio. A coragem de criar seus próprios caminhos.

Cidade do México, outubro de 1968. Em meio ao ar rarefeito da altitude e à tensão de um mundo polarizado por guerras e mudanças sociais, o Estádio Olímpico Universitário assistia a algo completamente novo. Não era apenas um salto. Era um rascunho de futuro.

Um rapaz magro, introspectivo, com um nome ainda desconhecido fora dos Estados Unidos, Dick Fosbury, caminhava em direção à pista do salto em altura. Ele havia se classificado entre os melhores, mas o que realmente chamava atenção era a forma como ele saltava. Estranha. Esquisita. Desconcertante. Enquanto todos ainda usavam técnicas como o straddle (passando de lado, com o peito voltado para o sarrafo), Fosbury corria em curva e saltava de costas, com o corpo arqueado e os pés por último.

A arquibancada riu nas eliminatórias. Alguns técnicos franziram a testa. Outros viraram o rosto. Mas a cada tentativa, o jovem de Oregon superava a marca anterior com precisão. Na final, diante de um estádio lotado, Dick Fosbury saltou 2,24 metros, conquistando a medalha de ouro e estabelecendo um novo recorde olímpico. Seu estilo não só funcionava, era superior. Tão superior que, nos anos seguintes, seria adotado por praticamente todos os saltadores do mundo.

Ele não apenas venceu. Ele virou o jogo.

O salto em altura, até então, obedecia a padrões quase coreográficos. Existia uma maneira “correta” de saltar. Fosbury, ao inverter a lógica e a posição do corpo no ar, fez mais do que vencer uma prova: introduziu um novo paradigma, tão eficaz quanto inesperado, tão estranho quanto definitivo. O que começou como anomalia virou manual.

E isso não acontece com frequência.

O esporte, embora celebre o inusitado, nem sempre é terreno fértil para ele. Há uma curiosa contradição: buscamos performance, mas também segurança. A repetição, a norma, o protocolo, todos oferecem o conforto de quem tem um caminho conhecido a seguir. Mas a história do alto rendimento também é feita de rupturas. Fosbury não foi só ouro. Foi ruptura.

Desde que conheci sua história, ela me atravessa de forma particular. Dick Fosbury é, até hoje, uma das minhas maiores inspirações no esporte e na vida. Sua trajetória carrega algo que sempre me tocou: a combinação entre um olhar atento e uma recusa silenciosa em seguir caminhos prontos. Não era sobre desafiar o mundo, era sobre escutar a si mesmo. Sobre romper padrões sem alarde, apenas pelo compromisso de ser fiel à própria forma de saltar. Para muitos, é só um fato histórico. Para mim, sempre foi um manual sutil de como viver com autenticidade.

A pergunta, então, não é se alguém conseguirá quebrar um recorde. Isso, cedo ou tarde, acontece. A pergunta que vale ser feita, e refeita, é outra:

Teremos, ainda nesta geração, um gesto que mude o esporte por completo? Não um novo tempo, ou uma nova marca. Um novo jeito.

Talvez o que nos falte não seja apenas talento, mas ambiente. O gesto de Fosbury não teria sobrevivido se, antes do ouro, tivesse sido podado pelo zelo excessivo de um treinador inseguro ou pelo cronômetro impaciente de um ciclo olímpico. A inovação, no esporte e fora dele, não floresce só da genialidade, mas da permissão. Da escuta. Da curiosidade sem urgência.

Hoje, vemos atletas moldados desde cedo por cartilhas. Os corpos treinam. A mente calcula. Mas nem sempre o sistema acolhe o desvio. A pergunta “e se?” tem perdido espaço para a afirmação “é assim”. Há um risco silencioso nisso: o de que a busca por eficiência nos torne menos criativos. Mais rápidos, mas menos originais.

E não é que falte vontade. Muitas vezes, falta confiança no improviso. Falta coragem para sustentar o olhar cético de quem ainda não entendeu. Falta treinador que aguente assistir um movimento “errado” sem corrigi-lo imediatamente. Falta atleta disposto a pagar o preço da tentativa, não apenas pelo resultado imediato, mas pela descoberta.

Talvez estejamos esperando a próxima revolução técnica no lugar errado.

Talvez ela não venha de um salto, mas de um silêncio.

De um não.

De uma recusa a repetir, mais uma vez, o gesto que já deu certo.

Porque toda reinvenção carrega em si uma dose de solidão. O primeiro a fazer diferente é, quase sempre, o primeiro a ser visto com estranhamento. E é aí que mora a grandeza do salto de Fosbury: não foi só o movimento, foi o momento. A escolha de seguir a própria lógica num cenário em que todos esperavam outra coisa.

É essa escolha que sempre admirei. Fosbury não correu atrás do extraordinário. Ele correu em direção ao que fazia sentido para ele. O salto, no fundo, foi apenas consequência.

Não sabemos se o próximo marco virá de um gesto técnico, de uma estratégia tática ou de uma atitude ética. Mas se vier, quase certamente, será antes desacreditado. Raramente a inovação chega com aplauso. Primeiro ela chega com riso, com dúvida, com resistência. O salto de Fosbury nos lembra que, de tempos em tempos, é preciso permitir que algo absurdo floresça.

Nem sempre o novo se impõe pela força. Às vezes, ele apenas ignora a direção do olhar alheio, e voa de costas, tranquilo, até encontrar o futuro.

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