Tem coisa que a gente sempre soube. Mas leva tempo até que o mundo aceite. Como o fato de que o atleta não joga apenas com os pés, as mãos, ou seja, com o corpo. Ele joga com tudo: com o que pensa, com o que sente, com o que teme e com o que acredita. O corpo é só a superfície visível de um ecossistema muito mais complexo. Mas até pouco tempo atrás, era só ele que aparecia na tela. Agora, não mais.
Recentemente, uma reportagem publicada no The Guardian revelou algo que deveria interessar, e muito, a quem se dedica à formação esportiva: clubes como o Brighton, da Premier League, e o Bayern de Munique, da Bundesliga, começaram a utilizar inteligência artificial para analisar o comportamento emocional dos atletas durante os jogos. Não, não é “análise de desempenho físico”, é leitura de sinais não verbais: gestos, reações, posturas, microexpressões. A ideia é simples e poderosa: entender como os atletas se mostram para o jogo quando estão sendo eles mesmos, no calor da competição.
E o mais provocador? Os algoritmos estão aprendendo a identificar traços de liderança, controle emocional, autoconfiança, evitação, retração. Estão medindo, com base em milhares de vídeos e interações catalogadas, o que antes era terreno exclusivo da sensibilidade do treinador, do olhar atento do coach, da escuta do psicólogo.
Não se trata de substituir ninguém. Trata-se de evoluir a forma como vemos e trabalhamos o atleta, de sair do “achismo” e entrar em um nível mais sofisticado de entendimento humano.
Como profissional que atua há anos com desenvolvimento mental no esporte, não vejo isso como uma ameaça. Vejo como uma enorme oportunidade. Porque, pela primeira vez, temos a chance de construir pontes entre o que o atleta faz sem perceber e o que ele precisa entender sobre si mesmo para evoluir. É como se a IA abrisse uma nova janela para a mente do jogador, mas cabe a nós a responsabilidade de saber o que fazer com o que essa janela revela.
Um dado não ensina, um número não transforma, mas pode acender uma luz.
E é exatamente nesse ponto que o trabalho comportamental e mental precisa se posicionar. A tecnologia pode indicar que um atleta apresenta sinais repetitivos de retração sempre que está sob pressão. Ótimo. Agora… o que fazemos com isso? Como transformamos essa informação em treino? Em repertório? Em rotina emocional?
Como criamos, com esse dado, um exercício prático que ajude esse atleta a treinar sua presença, sua confiança, sua reação?
A resposta não está na tela. Está no campo. No olhar. Na escuta. Na forma como conduzimos a experiência do atleta para que ele entenda o próprio padrão e crie novas escolhas mentais e comportamentais. Não se trata de robotizar o treino. Trata-se de humanizá-lo com mais precisão.
A verdade é que muitos atletas não sabem como estão sendo em campo. Eles treinam o que fazer, mas não treinam o como se mostram. E essa camada, o “como”, tem sido cada vez mais decisiva para as decisões técnicas e estratégicas nos grandes clubes. O comportamento virou critério. A atitude virou dado. A linguagem corporal virou estatística.
Isso não significa que vamos delegar à IA o papel de formar atletas. Significa que ela pode ser uma aliada poderosa se soubermos usá-la com sabedoria. Ela nos ajuda a enxergar o que o hábito já nos impedia de ver. E mais do que nunca, nos convida a evoluir como educadores do esporte. A sair da zona do julgamento (“esse menino é inseguro”) e entrar na zona da construção (“esse é o padrão dele, e aqui está o caminho possível para evolução”).
Essa é a beleza do jogo que está se desenhando agora: um jogo onde comportamento e desempenho estão no mesmo plano. Onde o mental não é mais uma camada opcional, mas uma dimensão essencial do atleta. E onde o coach, o treinador, o preparador, o psicólogo, todos nós, somos chamados a sermos mais do que profissionais com boas intenções. Somos chamados a ser intérpretes lúcidos de um novo idioma esportivo, onde gestos falam, e dados escutam.
Então, se você ainda está discutindo se treinar a mente é importante ou não, talvez já tenha perdido a primeira convocação.
Porque a próxima geração de atletas não vai apenas correr mais rápido ou pular mais alto. Ela vai aprender a se conhecer em movimento.
E nós, os que preparamos, treinamos, orientamos e inspiramos, temos a chance histórica de fazer parte disso.
Com mais ciência, mais empatia, mais consciência.
E sobretudo, com mais humanidade.
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