O valor do erro na formação de um atleta.

Há uma frase repetida com boa intenção, mas semanticamente perigosa: “quero ajudar os jovens a não cometer os mesmos erros que eu cometi”. Ela soa responsável, madura, generosa. Porém, no contexto do esporte e da formação humana, ela revela uma ansiedade adulta, o medo de assistir a queda. E, por medo, muitos pais e formadores passam a construir muros acolchoados demais, corredores sem curvas, rotas sem riscos. Esquecem que ninguém aprende a caminhar num tatame esterilizado de tropeços. O erro não é uma falha no sistema educacional: é parte estrutural do sistema.

A neurociência vem repetindo isso há mais de duas décadas. O cérebro jovem consolida habilidades, motoras, emocionais e cognitivas, sobretudo quando precisa corrigir, ajustar, revisar. A chamada error-based learning, defendida em estudos da University of California em 2022, mostra que a ativação neural após um equívoco é maior do que após um acerto, especialmente no córtex pré-frontal, responsável por planejamento, regulação emocional e tomada de decisão. Em outras palavras, o erro é um treinador poderoso. Evitá-lo é, paradoxalmente, atrofiar competências essenciais para o esporte e para a vida.

Mas, na prática, ainda confundimos proteção com controle. Quando um pai escala a arquibancada para “negociar” minutos de jogo com o treinador, ele acredita estar defendendo o filho, quando, na verdade, rouba dele a chance de lidar com frustração, diálogo, estratégia, paciência. Quando um treinador grita “não erra!” durante o treino, imagina estar incentivando, quando, na verdade, aumenta cortisol, diminui percepção de jogo e sabota a coragem criativa. Quando um clube monta trajetórias perfeitas, sem competir, sem adversidade, sem bancar escolhas, acredita estar blindando talentos, quando, na verdade, fabrica atletas frágeis, dependentes, intolerantes ao imprevisto.

Curiosamente, os próprios atletas mais admirados do mundo parecem viver o movimento inverso. Kobe Bryant dizia que o jogo ficou mais interessante quando ele começou a estudar seus erros com curiosidade, não com vergonha. Simone Biles, após Tóquio, falou sobre a importância de reconhecer limites e recomeçar diferente. Pep Guardiola já afirmou que o maior presente que pode dar a um jogador é colocá-lo em situações incômodas, onde ele precisa pensar. Todos eles entendem algo simples: a excelência não nasce da preservação, e sim da reconstrução.

A questão é que amar alguém, especialmente um filho, é conviver com o medo de perdê-lo, decepcioná-lo, falhar com ele. E esse medo nos convence de que orientar significa prever, antecipar, decidir por ele, limpar o caminho antes que ele pise. Só que desenvolvimento não acontece à distância de segurança: acontece em desequilíbrio, em teste, em tentativa, em exposição. Adultos que tentam impedir o erro, sem perceber, transformam-se em curadores de museu: querem preservar a peça, mas ela deixa de viver.

E há um impacto silencioso nisso. Jovens que crescem sem autorização para errar internalizam duas crenças profundas: “se eu erro, eu decepciono” e “se eu erro, é melhor esconder”. Quando isso chega ao esporte, vira medo de arriscar o passe difícil, pavor de competir, ansiedade prévia, autocobrança desmedida, aversão ao protagonismo. Não porque o jovem não tem talento, mas porque aprendeu que só merece afeto quando acerta.

Por outro lado, quando o erro é assumido como parte legítima do processo, a relação com o esporte muda. A criança ousa. O adolescente arrisca. O atleta cria. O time evolui. E os pais respiram. Isso não significa romantizar o erro, aplaudir irresponsabilidade ou incentivar imprudência. Significa compreender a função pedagógica, emocional e neurológica do equívoco, e acompanhar de perto para que ele se transforme em consciência e não em ferida.

Por isso, talvez a pergunta mais importante para adultos não seja “como evitar que meu filho erre?”, mas “onde estarei quando ele errar?”. Estarei oferecendo julgamento ou escuta? Pressa ou reflexão? Sermão ou perguntas? Estarei impondo minha leitura ou ajudando-o a construir a dele? Estarei tentando consertar a vida dele ou ensinando-o a reparar a própria?

A psicologia do desenvolvimento sugere que a presença adulta mais transformadora não é a que previne, mas a que suporta. Não a que antecipa, mas a que acompanha. Não a que retira obstáculos, mas a que ensina a atravessá-los. Pais e formadores não são engenheiros de pistas perfeitas, e sim guias de travessias imperfeitas. A responsabilidade não é blindar o jovem da vida, e sim prepará-lo para viver.

No esporte, esse preparo pode assumir muitas formas: permitir que o jovem explique o que sentiu após errar; pedir que descreva alternativas para a próxima vez; ajudá-lo a enxergar padrões; convidá-lo a responsabilizar-se sem se punir; estimular que escreva, registre, observe, reflita. Pequenas rotinas que constroem autonomia emocional e cognitiva. São exercícios mentais tão importantes quanto pliometria, força, tática e técnica.

E é nesse ponto que o papel dos adultos se torna insubstituível. Não para operar a vida do jovem por controle remoto, mas para criar ambientes onde ele se sinta seguro para tentar, falhar, corrigir, evoluir e tentar novamente. Ambientes onde a curiosidade é mais valorizada do que a obediência, onde a pergunta vale mais que a resposta perfeita, onde o processo tem mais valor do que o resultado imediato. Ambientes onde errar dói, mas não destrói, porque existe acolhimento, diálogo e responsabilidade compartilhada.

Talvez, no fundo, a maior maturidade que um adulto pode demonstrar seja admitir que não conseguirá livrar ninguém das dores que um dia também teve. E que tudo bem. Não é fracasso, é humanidade. O que podemos oferecer, e isso já é imenso, é presença, critério, perguntas inteligentes, valores claros, limites consistentes, paciência, humildade e um olhar que acolhe sem infantilizar.

Porque, ao contrário do que muitos acreditam, os jovens não precisam de salvadores. Precisam de testemunhas comprometidas com seu processo. Precisam de adultos que entendam que crescer é um verbo transitivo: só ganha sentido quando encontra espaço, tempo e experiência. Inclusive, e especialmente, quando essa experiência envolve errar.

E talvez, quando pararmos de competir com a vida para evitá-la, possamos nos aproximar dos jovens de forma mais honesta, mais humana e mais útil. Afinal, ninguém se torna atleta, ou pessoa, apenas acertando. O acerto celebra; o erro ensina. E é na convivência madura entre os dois que o desenvolvimento acontece.

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